terça-feira, 17 de abril de 2012

O Clube Secreto da Insônia

Tenho hábitos noturnos. Gosto da quietude provocativa da noite e os sentimentos que ela desperta em alguns de nós. Em Nova York, porém, cidade barulhenta por natureza, o silêncio habitual de outros lugares dá lugar a uma sinfonia incessante. E é exatamente este ruído que me deixa de pé horas após os ponteiros cruzarem a marca da meia-noite.

Ao cair da madrugada, alcanço o livro deitado à cabeceira da cama e começo a folhear suas páginas. Minutos depois, sou retirado do mundo da imaginação. Pelas frestas da janela, o barulho da cidade invade o apartamento e toma conta de todo o ambiente. Geralmente, é a sirene estrondosa de uma ambulância que cruza furiosamente a avenida ao lado, ou o zumbido dos tambores que um vizinho porto-riquenho teima em tocar apesar das reclamações dos condôminos.

Para mim, o grito da sirene ou a percussão escandalosa não me perturbam. Na verdade, ambos servem como um despertador. Eles me colocam de pé, fazem calçar o que estiver a frente da cama, cruzar a porta e sair rumo à  pequena mercearia no final da rua. Nova York é uma cidade que acostuma mal seus moradores. Se o seu estômago roncar às duas horas da manhã, ou sua garganta secar no desejo incontrolável de uma coca-cola, basta sair de casa e andar poucos metros até encontrar algum lugar aberto.

Gotham City funciona 24 horas e faz jus ao adjetivo de cidade que nunca dorme. Confesso que mesmo tendo crescido em São Paulo, ainda me sinto perdido quando sou assombrado por um súbito desejo de sair para beliscar um sanduíche na madrugada paulistana. Sim, nova-iorquinos são mimados, gostam e se orgulham disso.

Na mercearia, conheço o rapaz paquistanês que fica atrás do balcão. Ele me recebe sempre com um sorriso acolhedor e, de pronto, retira um copo de café da máquina sem que eu precise lhe dizer uma única palavra. Talvez seja sua espontânea receptividade, ou o par de mesas no canto direito da loja, que faz com que sempre haja alguém por lá.

Passadas umas boas semanas visitando o meu colega de Islamabad, percebi que os rostos que costumo encontrar na mercearia, durante a madrugada, são todos conhecidos. Em Nova York, diferentemente do que se vê em qualquer cidade brasileira, as pessoas são bem menos amistosas. Elas podem até responder um contato visual com sorriso, mas palavras raramente lhe fogem da boca. Mind your own business é o lema na Big Apple. Isto faz com que eu leve mais tempo para perceber que já encontrei determinada pessoa antes.

Ainda assim, sigo com meu cordial good night, how are you, hello e por aí vai. Foi assim que conheci meus caros colegas frequentadores da mercearia. Ao todo, eles formam um grupo de quatro pessoas. Algumas vezes, há um convidado trazido por alguém do bando. Custou-me um tempo até que eu fosse finalmente convidado para juntar-me a eles e ter o privilégio de sentar-me à mesa.

Os quatro são pessoas de personalidades, profissões e estilos de vida diferentes. O mais velho do grupo, um senhor na casa dos 60 anos, é viúvo e professor de violino. Ao lado esquerdo dele, curvada e apoiada nos dois cotovelos, está uma estudante de literatura inglesa da Columbia University. Completam a equipe um rapaz judeu de fala mansa e voz grave, e uma senhora dominicana que faz tricô enquanto participa da conversa. Apesar de todas as diferenças, os quatro compartilham uma mesma característica. Todos sofrem de insônia.  

O professor de violino foi o primeiro a frequentar o lugar e após se deparar com as mesmas pessoas, às mesmas horas da madrugada, foi pouco a pouco estabelecendo contato.  Até o dia em que resolveu confidenciar seu problema e encontrou não só a compreensão dos novos colegas, mas também afinidade. Sentados à mesa, os quatro pouco falam de insônia, ou noites mais dormidas. Os temas das conversas costumam abranger notícias do dia, artigos publicados no New York Times e assuntos corriqueiros como a ineficiência do sistema de coleta de lixo, ou algum escândalo envolvendo celebridades.

Às vezes, a jovem estudante de literatura saca da bolsa um livro e começa a ler algumas páginas. O assunto, na maioria dos casos, gera reflexão e opiniões distintas. Pronto. Está aberto o debate da noite, ou melhor, da madrugada. No balcão, o sorridente paquistanês assiste a cena agradecido. Ele não está mais só. Apesar de não se envolver nas conversas, o grupo presta companhia à ele e ajuda a passar o tempo. Principalmente nas noites frias e intermináveis de inverno, diz ele.

Antes do sol nascer o grupo se levanta e parte em retirada. Um a um vão se despedindo do atendente com um aceno, ou um educado baixar da cabeça. Em noites mais animadas, é possível ouvir alguém murmurar: “See you”. Se vão dormir ou não, pouco importa. Afinal, ter insônia em Nova York, apesar de tudo, pode ser sinônimo de entretenimento. 

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