segunda-feira, 21 de maio de 2012

Amor em Diferentes Sabores

O amor é cheio de mistérios. Não tem fórmula, nem receita. Desafia a ciência e faz loucos os mais sãos. Há aqueles que se apaixonam a primeira vista e aqueles que descobrem-se apaixonados apenas no trigésimo quarto encontro. Em alguns casos, os opostos se atraem. Em outros, continuam mais distantes do que nunca. Há ainda quem viva o romance de uma vida toda em uma única noite. Mas, também, quem viva uma vida inteira de romance.

Em Nova York, o melting pot do amor é único. No número 224 da 104th street, ele tem cheiro e sabor de molho agridoce. Na cozinha deste restaurante, o Malaysia Grill, uma garçonete de Kuala Lumpur umedece os lábios antes de beijar o namorado guatemalteco. Ele encaixa o rosto dela entre as mãos cheias de calos e fecha os olhos. O que passa pela cabeça deles é indecifrável, mas deve ser algo muito bom. Terminado o beijo, os dois sorriem. Não falam a mesma língua, mas o idioma do amor é universal.

Sentado à mesa, assisto a cena enquanto leio um e-mail de um grande amigo mexicano. O primeiro que fiz quando cheguei em Gotham City. Anexo à mensagem, há três fotos. Nelas, ele aparece ao lado da gal polonesa que conheceu durante um curso de Direito no último verão. Os dois passeiam por um parque em México City e dividem um sorvete de morango. Fazem planos. Ela está de visita, fica apenas poucos dias, mas pensa em se mudar para lá. Ele fala em largar tudo e voltar para a Big Apple.

Há pouco tempo, almocei com um colega marroquino para comemorar. Sua esposa, americana, está grávida. Já se foram quatro meses de gestação e ele segue firme na promessa de não perguntar o sexo do bebê. Quer que seja surpresa. Ela, não. Fez exames e sabe o que carrega no ventre, mas respeita a decisão do marido. O enxoval da criança tem cores neutras. Na parede do quarto recém-pintado, o berço fica abaixo de um crucifixo e ao lado de um Alcorão.

Penso em outras histórias como essa e lembro da minha primeira professora de inglês. Canadense, mas criada no Midwest. Acho que em Indiana. Seu marido vem de longe. Nasceu em São Petersburgo, na Rússia, e passou a adolescência tomando sol à beira do Rio Neva. Estão juntos a mais de 10 anos e ela ainda exibe uma cova na bochecha direita toda vez que fala dele.

Na New York University, uma colega de sala apresenta o namorado coreano na saída da aula. Ela é negra e dona de um lindo cabelo afro. Parece uma dessas modelos de comerciais de TV mais despojados. Os dois formam o tipo de casal que atrairia dezenas de olhares em qualquer lugar do mundo, mas não em Gotham. Aqui, eles são apenas mais um neste caldeirão de diversidade.

Na última semana, o Censo divulgou a mais recente pesquisa sobre o perfil da população norte-americana. Pela primeira vez, o número de recém-nascidos de origem negra, latina, ou asiática superou o de brancos.  Os grupos considerados “minorias” respondem por 54% da taxa de nascimento na Terra do Titio Sam. O dado tem importantes implicações sociais, culturais e políticas. No entanto, a intensidade com que elas vão remodelar a sociedade ainda é imprecisa.

Nova York é uma cidade-bolha. O que acontece dentro de seus limites geográficos, nem sempre é repetido além deles. Em algumas cidades dos Estados Unidos, racismo e preconceito ainda assombram e fazem vítimas aos montes. O caráter de alguém ainda é baseado na cor da pele da pessoa, e a maneira como ela é tratada pode variar, radicalmente, dependendo da sua origem.

Na Big Apple, cidade que acolheu e ainda recebe imigrantes do mundo todo, o amor que não julga corre livre pelas ruas. A capital do mundo é um exemplo de que o coração não distingue um turbante de um quipá, um olho mais puxado de um bem redondo e azul. O coração não perde tempo com essas coisas. Isso são preocupações criadas pelo homem. O medo do diferente é o que afasta e separa, constrói barreiras e segrega. O amor, em sua essência, cria pontes e conecta pessoas. Na arte do imprevisto, prepara combinações inusitadas e oferece novo sabor a paladares tradicionais. Tempera a vida e deixa tudo com gosto de sobremesa.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Mendigos e Cassinos

- O nome da chinesa é Da Chun. Ela é tímida mesmo. As únicas palavras que ela sabe falar são: Atlantic City, ônibus e vinte dólares. Às vezes ela arrisca dizer “ida e volta”, mas soa estranho. Ela está aqui todos os dias e embaixo de sol, chuva, neve... essa é trabalhadora!

Quem me apresenta a vendedora sentada dentro do minúsculo guichê é Joe. Ele está atrás de mim na fila para tomar o ônibus clandestino que sai de Chinatown e vai até Atlantic City, no estado de New Jersey – a Las Vegas da Costa Leste dos Estados Unidos. São oito horas da manhã de uma quarta-feira. Joe está podre de bêbado e luta para se manter em pé. Já me acertou com os cotovelos duas vezes e recomeçou a cantar. Marvin Gaye. Let’s get it on.

Deslizo uma nota de dez dólares e outra de cinco pelo buraco na parte debaixo da janela do guichê. Quero ver se Joe está certo. A atendente aponta para as notas com o indicador e com a cabeça indica um banner no lado direito. Em seguida, ela fala:

-       - Atlantic City. Pausa. Ônibus. Pausa. Vinte dólares.

Joe está correto. Pego mais cinco dólares da carteira e completo o que falta. A vendedora me dá dois pedaços pequenos de papel cheios de caracteres chineses. Um deles diz Ticket em letras vermelhas. O segundo, Voucher. Coloco os papéis no bolso e caminho em direção a outra fila. Na minha frente, dois estudantes italianos leem um guia para turistas em Nova York. Na frente deles, quatro senhores porto-riquenhos conversam de braços cruzados. A fila começa a andar e os primeiros passageiros sobem no ônibus.

Escolho um lugar no fundo. Lado direito. Assento da janela. Joe vem cambaleando logo atrás. Ele se joga nos três últimos bancos e boceja. Em seguida, encosta a cabeça no vidro e apaga. Tem a respiração pesada.

Menos de trinta minutos depois, ele acorda e volta a cantar. Outra música. Voz mais grave. Tom sério. Enfia a mão num bolso interno da jaqueta e saca uma garrafa pequena. Tira a tampa e inclina o corpo pra frente. Olha pra mim:

-       Quer dar um gole?
-       Não, mas valeu por oferecer.
-       Tem certeza? É uísque do bom.
-       Tenho. Valeu mesmo.
-       Então vou brindar sozinho o meu aniversário.

Joe é o tipo de bêbado que não para de falar e é incapaz de diferenciar conversa de monólogo. Ele segue falando. Assim, sem perguntar nada, descubro quem é o “cara” ao meu lado.

Sargento reformado Joe Zamoro. Veterano do Vietnã. Nascido na Carolina do Norte. Separado (mas com namorada!). Dois filhos. Três na verdade. Um nasceu a pouco tempo. Menino forte. Parecido com o avô. Tem jeito para atleta.

Após descrever a família, ele começa a falar sobre cassinos. Viaja para Atlantic City pelo menos cinco vezes por semana. Não é viciado em jogo. Nem tem condições para isso. Na verdade, ele vai para lá fazer dinheiro. Joe explica.

Todo ticket de ida e volta vem acompanhado de um voucher de cinquenta dólares para ser trocado por fichas aceitas somente no cassino. Mas, no terminal de ônibus da cidade, o mercado negro passa o voucher adiante por até 35 dólares. Assim, quem gastou apenas vinte dólares para pegar o ônibus, pode voltar com quinze dólares na carteira.

Joe dificilmente volta com toda a grana. Às vezes, ele compra um sanduíche e asinhas de frango num boteco perto do calçadão. Tem dias que prefere beber cerveja.
De qualquer modo, o negócio é lucrativo.

-       Veja só. Eu não trabalho e ganho quinze dólares. Alguns dias faço mais de uma viagem. Daí já são 30 dólares.

Mas hoje é seu aniversário e Joe resolve tentar a sorte. Troca o voucher por fichas e caminha até a mesa da roleta. Ascende um cigarro. Discute com o segurança que pede para não fumar no interior do cassino.  Escolhe uma cor. Empurra as fichas sobre a mesa. Faz figas. Grita quando ganha. Abraça o segurança. Beija minha testa. Anda em direção ao guichê e sai de lá contando as notas.

-       Agora vou comemorar.

Atravessa a porta da saída, cumprimenta um dos seguranças e sai dando pequenos pulos pelo calçadão. Cinquenta metros à frente, encontra alguns amigos sentados num pequeno coreto. Ele saca a pequena garrafa de alumínio e dá um longo gole. Levanta os braços e aponta para o céu. Os outros respondem o estranho gesto com aplausos enquanto começam a cantar:

- Happy Birthday to you, happy birthday to you.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Psicodelia Brasileira na Terra do Tio Sam

Joel Fumaça é um cara… psicodélico. Juro que tentei buscar um adjetivo melhor, mas não há um que defina ele com a mesma perfeição. As roupas de Joel são psicodélicas. Seu cabelo é psicodélico. As palavras que ele usa e a maneira como estrutura suas ideias são psicodélicas. Seu gosto musical, adivinhem: psicodélico. E a loja de vinis usados que ele tem no Lower East Side - a Tropicalia in Furs - é psicodélica. Joel Fumaça, ou Joel Smoke, como ele é conhecido aqui na gringa, é pura psicodelia.

Instalada numa das vizinhas mais criativas de Manhattan, a Tropicalia in Furs é um templo de adoração a música brasileira dos anos 60 e 70. O estilo retrô da loja e os bolachões dos Mutantes e Sergei pendurados na parede transformam o pequeno cubículo no número 304 da 5th street em uma cápsula do tempo. Atrás do pequeno balcão no fundo da loja, uma vitrola girando um vinil de Jorge Ben Jor dá o toque final à nostalgia.

Sem consentimento do Itamaraty mas com suporte quase unânime de músicos e curiosos, Joel Fumaça é considerado o embaixador da música brasileira em Nova York. Ele é o go-to-person daqueles que veneram o que a maioria dos bons brasileiros desprezam com tamanha aptidão. Por sorte, aqui em Manhattan, música brasileira é sinônimo de qualidade e é assim, apresentando acordes verde e amarelo para gente do mundo todo, que o psicodélico dono da Tropicalia in Furs ganha a vida.

Numa tarde de sexta-feira, paro na loja para bater um papo com Joel. Ele está com pressa. Precisa embalar alguns bolachões e mandá-los para o Brasil. A Feira de Vinil do Rio de Janeiro acontece em alguns dias. “Quero estar lá para trocar meu acervo de LP’s gringos por mais preciosidades brazucas”, conta. Mas não é só isso. Fumaça desembarca no Aeroporto Internacional Tom Jobim com mais uma missão: reencontrar músicos brasileiros esquecidos pelo tempo.

Terras Tupiniquins é o berço de instrumentistas talentosos que tocaram em álbuns consagrados nacionalmente e internacionalmente, mas que nunca foram capazes de emplacar as próprias músicas. Numa época em que selos independentes eram raridade, as gravadoras brasileiras escolhiam a dedo o que chegava ao público. Tudo aquilo que fugia do convencional, do mainstream, era engavetado.

O avanço tecnológico e o surgimento de mídias digitais abriram as portas deste desconhecido mundo das sete notas e criaram um mercado único para caçadores de raridades. EPs e LPs antes abandonados em prateleiras empoeiradas, ganharam as ruas e se transformaram em objetos de desejo e cobiça. “Da última vez que fui ao Brasil, me encontrei com o Paulo Bagunça da Tropa Maldita. O cara vive recluso, mas topou falar comigo. Nem usa mais o nome Bagunça.  Disse que deu muita confusão pra ele. Mesmo assim, ele conversou comigo e gostou da ideia do filme”.

Joel Fumaça, o Indiana Jones à brasileira, está gravando um documentário sobre estes talentos perdidos. A ideia é relançar estas músicas e criar um arquivo do movimento psicodélico no Brasil. “O que falta no nosso país é registro”. Joel continua e me fala uma série de músicos que já foram entrevistados para o seu filme, mas por alguma razão o nome “Paulo Bagunça e Tropa Maldita” continua a consumir meus neurônios e me distrai de todo o resto. Fico ansioso para ouvir que tipo de som é esse. Não resisto e peço. “Cola o Bagunça pra tocar”. Ele sorri.           

Isso é o que Joel gosta. Gente de todo tipo visita a Tropicalia in Furs para aprender um pouco mais sobre música brasileira. Executivos de terno, adolescentes de skate e universitárias com Ipods. Fumaça tem um carisma sem igual e atrai os mais variados gêneros de pessoa. Às oito da noite sua assistente começa a fechar a loja, mas só termina por volta das onze. “O povo vai entrando e a gente abre uma garrafa de vinho... já viu, né?”.

O paulista de Guarulhos parece satisfeito com a vida que leva. Foi uma batalha longa, revela. Mudou para Nova York há mais de 12 anos. Trabalhou como faxineiro, entregador de comida e engraxate. Estava no World Trade Center no dia em que as torres gêmeas vieram abaixo. Ilustrava o sapato de um cliente quando foi engolido por uma onda de fumaça. Saiu correndo. Deixou tudo para trás. Escapou.

Entre um trabalho e outro, Joel secretamente alimentava o desejo de abrir uma loja de vinis em Nova York. Um certo dia, depois de juntar dinheiro por um bom tempo, alugou o porão de um pequeno prédio e começou a vender bolachões. O lugar era pequeno e enchia de água em dias de chuva. Ele persistiu e foi criando sua clientela. Quando o negócio começou a melhorar, juntou dinheiro mais uma vez, e mudou seu quartel general para a sede atual da Tropicalia in Furs.

Hoje, a loja é a prova de garoa e o aluguel é pago sem grandes sacrifícios. Um dos clientes mais conhecidos é o ator Elijah Wood - o Frodo de Senhor dos Anéis. Sempre que está em Nova York, Elijah visita Joel. Debruçado no balcão, ele balança a cabeça e fecha os olhos. Pergunta o nome da banda que está tocando. Pede para ver a capa do vinil. Arrisca pronunciar o nome do grupo.

Fumaça conta que a próxima etapa é abrir uma gravadora. Parceiro ele já tem: Elijah. Nome do selo? Ainda não. Há algumas sugestões, mas nada certo. Quer dizer, quase isso. É que na noite anterior, Joel teve uma ideia. Um nome engraçado, ele diz. Vai depender apenas se o seu sócio concordar. Explodindo de curiosidade, pergunto. Ele me olha, dá um daqueles sorrisos e aponta para o próprio cabelo. “Afrodo Records”.


*** Abaixo Joel fala sobre a origem da música brasileira.
Trilha de Abertura: Paulo Bagunça e a Tropa Maldita - Apelo